sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Bactérias apertam o cerco à ciência

Microrganismos resistem cada vez mais às armas terapêuticas. Já há dúvidas sobre quem vai vencer a guerra.


Cuidados intensivos e blocos operatórios são locais de risco

Não é novidade existirem bactérias que resistem aos antibióticos criados para as matar. É uma inevitabilidade, conhecida de longa data dos cientistas, mas há certos detalhes que fazem soar o alarme, como aconteceu com a descoberta recente de um novo mecanismo de resistência em duas bactérias - escherichia coli e klebsiella pneumoniae - com origem na Índia.

"A grande novidade foi terem aparecido num grupo muito frequente de bactérias - as enterobacteriáceas, que vivem no nosso intestino - e terem conseguido resistir à última classe possível de antibióticos", reservados para infeções multirresistentes críticas, explica o presidente do Colégio da subespecialidade de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos, Rui Moreno. E agora? "Só restam os fármacos mais antigos e muito tóxicos e esperar que surjam novas classes de antibióticos", admite o também presidente da Sociedade Europeia de Cuidados Intensivos.

"É uma questão de tempo o novo mecanismo de resistência surgir noutras bactérias da mesma família. Tentar evitar a circulação de microrganismos é um investimento que existe desde o século XIX e não foi por acaso que esta situação surgiu na Índia", alerta o infecciologista do Hospital Egas Moniz, em Lisboa, Jaime Nina. A explicação é simples: "Estas bactérias saem do intestino, vão para os esgotos e sem saneamento e condições de higiene continuam a circular".

A boa notícia é que a maioria das 'superbactérias' ainda está confinada aos hospitais, sobretudo às Unidades de Cuidados Intensivos e blocos operatórios. A regra foi confirmada com o caso indiano - as infeções semelhantes já notificadas em vários países, Portugal excluído, atingiram 'turistas de saúde' (deslocam-se para receber cuidados médicos noutros países) tratados em unidades na Índia. "No mundo desenvolvido é muito raro que um doente entre no hospital com uma bactéria resistente vinda da comunidade", salienta o responsável pelo Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, Vaz Carneiro.

E o risco não é o mesmo para todos os hospitalizados. "As grandes vítimas são pessoas com idade avançada, sujeitas a cirurgias ou imunodeprimidas (com um sistema imunitário muito débil)", explica a coordenadora do Programa Nacional de Prevenção das Resistências aos Antimicrobianos, da Direção-Geral da Saúde, Cristina Costa. A responsável revela ainda que a tuberculose e a sida são as doenças com mais vítimas por falta de um antibiótico capaz de matar o agente infeccioso resistente.

"Ainda há muito a fazer em Portugal"

Cristina Costa admite, por isso, que "ainda há muito a fazer em Portugal sobre a resistência aos antibióticos, mas é preciso dinheiro; todos os hospitais têm comissões de controlo de infeção, mas nem todas têm os meios necessários". A responsável explica que "o programa, datado de Novembro de 2009, só foi aprovado agora e ainda não há uma estratégia concertada para a prescrição de antibióticos; é um trabalho de equipa".

Os objetivos são prescrever antibióticos com parcimónia, estar vigilante a atuar ao primeiro sinal de alarme. A partir do próximo ano estará a funcionar um sistema de notificação obrigatória alargado a microrganismos alerta: todos os que são resistentes ou provocam surtos de infeções nos hospitais. Segundo Cristina Costa, "um grupo-piloto de hospitais vai analisar diariamente amostras de doentes". A missão é ganhar terreno às bactérias: "Notificadas rapidamente permitem medidas imediatas e que as unidades comuniquem entre si".

Será uma luta contra o tempo sem vitória garantida. "O aparecimento de bactérias resistentes é inevitável. O uso adequado dos antibióticos só reduz o ritmo de aparecimento, dando-nos mais tempo de resposta", diz o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, Mário Jorge dos Santos. Para o especialista em medicina intensiva Rui Moreno, "corremos o risco de voltar à era pré-antibiótico - as bactérias aproveitam-se dos nosso erros".

O infecciologista Jaime Nina desdramatiza: "Só no mercado português há seis mil antibióticos e não há nenhuma bactéria que resista a todos. E ainda há a solução de reciclar antibióticos: alguns foram retirados há 15 anos e agora funcionam com bactérias resistentes a quase tudo". Mas a vitória também depende do uso dos antibióticos nos animais. Para a bastonária da Ordem dos Médicos Veterinários, Laurentina Pedroso, não há nada a temer. "As regras europeias são respeitadas e uma das provas é o relatório da Agência Europeia de Segurança Alimentar de abril deste ano". Segundo a especialista, "em 750.912 amostras só 652 não estavam em conformidade quanto ao uso de antibióticos".

Ainda assim, as bactérias resistentes não vão desaparecer. Como dizem vários cientistas, são um exemplo flagrante das teorias evolucionistas de Darwin: os mais fortes sobrevivem e adaptam-se.

Investigação

Pele de sapos testada para antibióticos

Mais de seis mil espécies de sapos estão a ser estudadas na Universidade dos Emirados Árabes Unidos em Al-Ain para produzir novas fórmulas de antibióticos. A partir de secreções na pele destes anfíbios, os cientistas já conseguiram identificar mais de 100 substâncias de antibióticos, incluindo contra agentes resistentes - como a iraqibacter (isolada em soldados feridos no Iraque) e os staphylococcus aureus, insensíveis à meticilina, sob alerta em Portugal.

Um dos investigadores, o bioquímico Michael Conlon, explicou ao Expresso que as biomoléculas da pele dos sapos "abrem a membrana das células das bactérias ou dos fungos, como se fossem um detergente", matando-as. Acredita que poderão ser eficazes para a enzima resistente descoberta em duas bactérias com origem na Índia.

Alertas em Portugal

Staphylococcus aureus
Causa de infeções banais da pele como furúnculos e abcessos por picadas

Enterococcus
Parte da flora intestinal, provoca, por exemplo, doenças em pessoas com pouca higiene

Streptococcus pneumoniae
Responsável mais comum pela pneumonia

Enterobacteriáceas
Vivem no intestino e estão na origem de infeções urinárias

Pseudomonas aeruginosa e Acinetobacter baumannii
Provocam, entre outras, infeções associadas a cirurgias

Números

6

é a posição de Portugal na lista dos países europeus que usam os antibióticos abusivamente, segundo o Centro Europeu para a Prevenção e Controlo das Doenças

73%

dos portugueses afirmaram ao Eurobarómetro que os antibióticos são eficazes contra gripes e constipações

9,8

milhões de antibióticos foram vendidos às farmácias portuguesas desde agosto de 2009, menos 1,2 milhões do que no período anterior

Boas práticas

Doentes

Tomar antibióticos apenas receitados por um médico. Cumprir o número de doses, o intervalo de toma e a duração do tratamento

Médicos

Prescrever antimicrobianos só quando há prova científica de que são eficazes. Reservar os fármacos de largo espetro para situações limite

Explorações animais

Utilizar somente medicamentos receitados por veterinários, cumprindo as doses, a duração do tratamento e os intervalos de segurança. Manter durante cinco anos registos de todos os remédios administrados

fonte: Expresso

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