sábado, 25 de fevereiro de 2012

Rasputin se recusa a morrer


Barba desgrenhada, cabelos maltratados e olhar magnético: em 1916, este filho de camponeses semianalfabeto era o homem mais poderoso da Rússia

A alucinante história da morte do mago e curandeiro da realeza russa que, numa única noite, foi envenenado, alvejado por tiros e mutilado, mas se recusou a morrer nas mãos de seus assassinos.

Em 1916, Grigori Iefimovitch Novykh, vulgo Rasputin, era o homem mais poderoso da Rússia. Dizem que tinha um olhar penetrante e magnético, compatível com a fama de místico que ampliava seu poder pessoal.

De facto, exercia indiscutível fascínio sobre o frágil czar Nicolau II e sua bem-amada esposa, a imperatriz Alexandra Feodorovna.

Mas o poder de Rasputin não era nem um pouco oculto. Apoiava- se na excepcional ascendência que tinha sobre os monarcas absolutos da Rússia de então. Ele nomeava ministros do mesmo modo que os derrubava.

Sua aparência era desagradável. Filho de camponeses (então chamados “mujiques”, sinónimo de pobreza associada à servidão), o mago era sujo e grosseiro: a barba estava sempre desgrenhada, e os cabelos eram compridos, maltratados e gordurosos. Mal sabia ler e escrever.

Príncipes e grão-duques ficavam chocados diante da visão daquele homem. A população o temia.

A nobreza espalhava boatos de que ele seria o responsável por todas as agruras pelas quais o país passava na Primeira Guerra Mundial, e as más línguas o acusavam, infundadamente, de ser amante da czarina, além de agente da inimiga Alemanha. Alguns conspiravam para assassiná-lo, o que ele não ignorava.

No início de dezembro daquele ano de 1916, Rasputin enviou a Nicolau II uma carta profética:

Czar de todas as Rússias, tenho o pressentimento de que até o final do ano eu deixarei este mundo. Serei assassinado, já não estarei entre vós. Se eu for morto por gente do povo, gente como eu, tu não tens nada a temer, continuarás no trono.

Mas, se eu for morto por nobres, as mãos deles ficarão manchadas pelo meu sangue. Eles se odiarão e  se matarão uns aos outros. Dentro de 25 anos não restará um único nobre neste país. Nenhum parente teu, nenhum de teus filhos sobreviverá mais de dois anos.

O povo russo dará cabo de todos. Assim, depois que eu desaparecer, tem cuidado, pensa bem, protege-te. Diz a todos os teus que derramei meu sangue por eles. Reza, reza, sê forte, pensa em tua família.

Alguns dias depois, em 29 de dezembro de 1916, um telefonema anónimo avisou Rasputin de um perigo iminente, mas sem mais detalhes.

Um pouco mais tarde, Protopopov, ministro do Interior, foi pessoalmente pedir que ele se trancasse em casa.

Tudo em vão, pois à meia-noite, o místico se vestiu e se perfumou para sair. Usou uma camisa azul celeste, bordada de flores de girassol, e uma calça preta e bufante de veludo, além de botas de cano alto de verniz.

Uma noitada social aguardava o enjeitado filho de camponeses no palácio Iussupov, o ambiente mais luxuoso de Petrogrado (atual São Petersburgo).

O carro do próprio príncipe Félix Iussupov foi buscá-lo em casa para o noite social: conhecer sua casa e sua jovem esposa, Irina; em seguida, os três procurariam diversão fora dali, com os ciganos.

Era uma armadilha. Na realidade, Irina estava em Ialta, na Crimeia. O príncipe havia organizado uma farsa.

No salão do primeiro andar, um fonógrafo tocava árias de dança, como se a dona da casa estivesse dando uma recepção para a alta sociedade local.

Na verdade, ali estavam somente os quatro cúmplices do príncipe: o grão-duque Dimitri Pavlovitch, o deputado Purichkevitch, o tenente Sukhotin e o médico Lazovert. Para produzir o som de vozes femininas, eles tinham convocado Marianna Defelden, parente de Dimitri, e Vera Karalli, bailarina do balé Bolshoi.


O místico ao lado de Mikhail Putyatin e do coronel Dmitry Loman, em 1905: influência nas diversas instâncias do governo russo

Quando chegaram, Rasputin ouviu o som do fonógrafo. O príncipe lhe disse que a esposa tinha convidados importantes, mas prestes a partir, e que ambos deveriam esperar bebendo algo numa encantadora sala íntima de refeições, no subsolo do palácio.

O fogo da lareira ajudava a iluminar a decoração perfeita e a mesinha com quatro copos, algumas garrafas, biscoitos e um prato com doces de chocolate.

Doces envenenados com cianeto de potássio pelo doutor Lazovert. Também havia veneno em dois dos quatro copos – para que não houvesse chance de erro na dose.

Rasputin e Iussupov sentaram-se e puseram-se a conversar. Nervosamente, o dono da casa ofereceu o prato com os doces.

Rasputin recusou, pois não gostava de doces, o que sua filha Matryona confirmaria posteriormente.

O príncipe ficou desconcertado, e o convidado acabou aceitando um e depois outro. Iussupov não tirava os olhos dele, ansioso por detectar os efeitos do veneno, mas nada acontecia. Ofereceu, então, um excelente vinho da Crimeia.

Nova recusa, nova ansiedade. Por fim, o próprio Rasputin encheu os dois copos vazios. Brindaram. Ele gostava de vinho, pediu para ser servido novamente. Iussupov conseguiu então dar a ele um dos dois copos que continham veneno.

Rasputin bebeu de um só gole, sem perceber nem gosto nem cheiro suspeito, e... nada aconteceu. Aquele homem parecia invulnerável!

Aterrorizado, Iussupov desculpou-se e subiu ao primeiro andar, para avisar seus cúmplices que o veneno não fazia efeito: Rasputin tinha seguramente parte com o diabo.

O príncipe desceu novamente. “Nós nos sentamos de frente um para o outro e bebemos em silêncio”, contaria ele em suas memórias.

“Rasputin me olhava com um sorriso de gozo, como que dizendo: 'Estás vendo, não podes nada contra mim'. De repente, ele me lançou um olhar de ódio. Um olhar diabólico.”

Passaram-se duas horas, e Rasputin se impacientava, vendo que Irina não chegava. Os quatro conspiradores, no limite de seus nervos, se perguntavam se não seria melhor descer de uma vez e acabar com Rasputin. Iussupov ia e voltava de um andar a outro.


O príncipe Iussupov, mentor do complô para assassinar o conselheiro místico do czar, e sua esposa, Irina

Argumentava que seu hóspede era capaz de uma reação terrível se visse os quatro chegarem juntos. Se Dimitri lhe emprestasse seu revólver, ele mesmo abateria o convidado!

O príncipe desceu novamente, com a arma escondida. Ao chegar ao subsolo, ficou por um momento contemplando o crucifixo sobre a escrivaninha. “Vê como esse Cristo é bonito”, disse ao convidado.

“Faz o sinal da cruz diante dele e reza uma oração.” Obrigando a vítima a fazer o sinal da cruz, esperava exorcizar o demónio que protegia seu inimigo. Talvez por intuição, Rasputin teve um momento de apreensão, mas seu adversário não lhe deu tempo de se recompor.

Empunhou a arma e acertou-o no peito. Com um grito, Rasputin desabou no chão. Ao ouvir o ruído, os quatro cúmplices entraram correndo e levaram o corpo do infeliz, em convulsão, até o pátio.

Antes de irem atirarem o corpo no rio, os quatro voltaram ao primeiro andar, para se despedir das duas senhoras e avisá-las de que o crime estava consumado.

Iussupov desceu novamente para contemplar o cadáver, conferiu o pulso e, acreditando que o coração já não batia, sacudiu o corpo com toda força e o deixou cair com violência sobre a neve. De repente, Rasputin abriu um olho, e em seguida o outro.

“Aconteceu então algo inacreditável”, continua Iussupov em seu relato. “Rasputin reuniu todas as suas forças. Com um pulo, se levantou, espumando pela boca, e avançou sobre mim, com um rugido assombroso. Com os dedos trêmulos, agarrou-se a meus ombros, depois ao meu pescoço, tentando me estrangular. Ele urrava meu nome.”


O mago cercado por suas admiradoras na corte russa, em foto de 1910

O príncipe contou que empurrou Rasputin com todas as forças e conseguiu se soltar. Do alto da escadaria, Purichkevitch ouviu o príncipe pedir: “Atira! Ele ainda está vivo”.

O cúmplice desceu, com um pesado revólver na mão. Viu Rasputin avançar sobre o príncipe no pátio, aos gritos: “Félix, Félix, eu vou contar à czarina!”.

Purichkevitch se lançou em sua perseguição e atirou duas vezes, mas errou. Chegou então o grão-duque Dimitri, o único militar do grupo, acostumado a usar uma arma.

Este também atirou duas vezes: a primeira bala atingiu Rasputin nas costas; a segunda, na cabeça, o derrubou no chão, sobre a neve.

Diante das duas mulheres assustadas, os homens exultaram. Descontrolado, Iussupov atacou violentamente o corpo e, depois, mandou o mordomo apagar os vestígios de sangue.

Para ter um álibi, matou com um tiro na boca seu cachorro mais fiel, para o caso de alguém declarar posteriormente ter ouvido estampidos de armas.

Purichkevitch, Sukhotin e Lazovert, por sua vez, enrolaram Rasputin num cobertor, amarraram com uma corda e o levaram de carro até uma ponte.

Ali, o alçaram sobre o parapeito, sobre a capa de gelo que recobria o rio Neva e procuraram uma brecha para lançar o corpo às águas.

Na pressa, esqueceram de pesos que fizessem o cadáver afundar. Dois dias depois, a 200 metros da ponte, surgiu o morto coberto de gelo e horrivelmente mutilado.

Mais surpreendente eram suas mãos: estavam erguidas, como se tentassem se soltar das cordas. A autópsia revelou a presença de água nos pulmões, prova de que apesar do veneno, das balas e dos golpes que sofrera, ainda respirava quando foi atirado à água. Morreu afogado e de frio.


A família do último imperador russo foi exterminada pelos revolucionários bolcheviques dois anos após a morte de Rasputin, exatamente como ele profetizou

Toda a cidade soube então da morte do místico. Uma multidão acorreu ao local, munida de baldes e garrafas, para pegar a água que tinha estado em contacto com seu corpo, como que para recolher uma parcela de sua força sobrenatural. A polícia identificou rapidamente os assassinos.

Na alta sociedade as pessoas comemoraram a vitória da “pátria” sobre o suposto traidor, mas o povo passou a vê-lo como mártir – o homem vindo da miséria, que defendia os interesses dos pobres junto ao czar, assassinado pela nobreza.

Para a czarina, foi uma tragédia: ela perdia aquele em quem depositava toda a sua confiança, um homem de Deus, aquele que lhe dava segurança. Alexandra viu nas mãos erguidas do morto um presságio sinistro: tudo desmoronaria na Rússia.

Tinha razão. Um ano e meio depois, na madrugada de 16 para 17 de julho de 1918, ela foi assassinada pelos bolcheviques, assim como seu marido e seus cinco filhos.

Nicolau II não era tolo. Ficou horrorizado com as circunstâncias do assassinato. Todavia sabia que, se aquele tipo de processo evoluísse publicamente, seu prestígio político e seu trono correriam perigo.

Mandou expulsar os assassinos da cidade e ordenou o encerramento das investigações.

O Apocalipse segundo o mago

O nome Rasputin tem a mesma raiz da palavra raspoutny, que significa “depravado”. O místico ganhou o apelido depois de se envolver em escândalos na juventude.

Costuma-se situar seu nascimento na segunda metade da década de 1860, num vilarejo da região de Tobolsk, na Sibéria.

Gostava de assediar mulheres, de disputar braço de ferro e de beber além do razoável. Desde a infância, tinha “surtos de misticismo”, talvez herança das histórias extraordinárias contadas por monges que se abrigavam na casa de sua família.

Aos 19 anos, Rasputin casou-se com uma camponesa e teve com ela cinco filhos. Seis anos depois, acreditou ver a Virgem Maria no campo. Um eremita o aconselhou a ir ao monte Atos, na Grécia.


Derrotados pelos alemães em agosto de 1914, milhares de russos são feitos prisioneiros em Tannenberg, no início da Primeira Guerra Mundial

Ele abandonou a família, partindo numa peregrinação que duraria mais de dez meses. Viveu da caridade e fez paragens em mosteiros, onde adquiriu parco conhecimento da escrita e um verniz suficiente para se fazer passar por religioso.

Foi assim que cresceu pouco a pouco sua reputação de sábio e de curandeiro. Mas havia também uma vida mística secreta a envolver Rasputin.

Ele frequentava reuniões dos khlysty, seguidores de uma seita que associava erotismo e religião. Em igrejas abandonadas, iluminadas por velas, adeptos de ambos os sexos, usando unicamente véus transparentes, entregavam-se a danças que degeneravam em transes e orgias selvagens.

Depois de ouvir dizer que o imperador e a imperatriz eram excessivamente ocidentalizados, ele quis conhecê-los e iniciá-los no que seria “a verdadeira alma russa”.

Em 1904, munido da carta de recomendação de um bispo, foi para São Petersburgo e impressionou a grã-duquesa Anastácia, que o apresentou à família imperial.

Como sabia que o herdeiro Alexis era hemofílico, Rasputin pôs suas mãos sobre o garoto e mandou que fossem atirados fora os remédios que tomava – aspirina, cujo efeito anticoagulante era desconhecido na época. A criança, claro, melhorou. 

Três anos mais tarde, Alexis teve crises de hemorragia interna, que os médicos não conseguiam controlar.

Rasputin foi chamado, benzeu a família imperial e se pôs a orar. Ao cabo de dez minutos, disse: “Abre teus olhos, meu filho”. E o menino despertou, sorridente. Rapidamente, sua saúde melhorou.

Encantada, a imperatriz delegou-lhe grandes poderes políticos. Ele assinava e transmitia petições de promoções e nomeações. Não cobrava dos pobres, dos ricos pedia somas razoáveis, e das mulheres, favores sexuais.

Tinha horror à guerra. Assim, em 1914, suplicou ao czar que a Rússia ficasse fora da Primeira Guerra Mundial. “Tu és o czar, o pai de teu povo. Não deixes que os lunáticos triunfem, te destruam a ti e a teu povo. (...) Nós nos afogaremos em sangue. Grande desastre e miséria infinita”, escreveu ao czar.

Fiel a sua aliança com a França, Nicolau II enviou suas tropas. O que veio depois da grande crise decorrente da guerra foi a revolução de 1917, que lhe custou a vida e a de sua família.


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