segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Ainda o Triângulo das Bermudas, ou a repetição de uma treta científica


Pseudociência e embuste – expressões que se aplicam ao mito do Triângulo das Bermudas. Novas “explicações” falam de umas nuvens e de uma relação com fenómenos meteorológicos do Mar do Norte, tudo sem sentido. O problema é que essas “explicações” tiveram eco em jornais pelo mundo fora.

O canal Discovery Science passou um documentário há algum tempo sobre uma suposta explicação para o suposto mistério Triângulo das Bermudas, zona nas Caraíbas onde seriam engolidos navios e aviões. A resolução do mistério-que-na-verdade-não-existe passaria, dizia-se, pela presença de um determinado tipo de nuvens. Mostravam-se imagens de satélite das tais nuvens no Triângulo das Bermudas, apontadas como a causa de tempestades fortes na zona. Mas estas afirmações não têm qualquer fundamento científico: a comunidade científica voltou a desmenti-las e os dois investigadores citados no documentário afirmam agora que, afinal, não disseram bem o que lá está. Já este mês, o próprio canal Discovery estreou em Portugal um novo documentário sobre o Triângulo das Bermudas que, este sim, deita por terra a existência de fenómenos sobrenaturais na zona.

As hipóteses que tentam explicar o desaparecimento de navios e aviões na área do Triângulo das Bermudas existem há várias décadas. A nova hipótese apontava para a existência naquela zona de “nuvens hexagonais” – nuvens que, como a designação indica, aparecem com uma forma hexagonal nas imagens de satélite.

Esta hipótese foi apresentada num documentário do Discovery Science transmitido no final de Outubro, na série What on Earth (ou Curiosidades da Terra), baseando-se em declarações dos meteorologistas norte-americanos Randy Cerveny e Steve Miller. Ambos usaram imagens de satélites da NASA para examinar o formato das nuvens presentes no Triângulo das Bermudas. E diziam que existem lá nuvens hexagonais. “As imagens de satélite são muito bizarras por causa das formas hexagonais das nuvens”, afirmava Randy Cerveny no documentário.

Mais tarde, o narrador do documentário dizia que a resposta para o “mistério” do Triângulo das Bermudas se encontrava muito longe dali, no Canal da Mancha: “A resposta está a 7240 quilómetros de distância, noutra imagem de satélite tirada no turbulento Mar do Norte, na costa do Reino Unido: mais hexágonos, espalhados por 90.650 quilómetros quadrados, mais ou menos o tamanho da Irlanda.”

É então mostrada uma imagem destas nuvens obtida pelo antigo satélite Envisat (da Agência Espacial Europeia) por cima do Canal da Mancha, e o narrador dizia que os ventos medidos aí à superfície do mar atingem mais de 160 quilómetros por hora – “poderosos o suficiente para [gerar] ondas de mais de 13 metros de altura”. Mais: “Os cientistas acreditam que os ventos poderosos registados por radar no Mar do Norte também existem debaixo das nuvens hexagonais nas Baamas.”

No vídeo de cinco minutos disponível no site do canal, Randy Cerveny falava daquelas nuvens e relacionava-as com outro fenómeno meteorológico: “As nuvens hexagonais no oceano são bombas de ar. Formam-se devido a microbursts, ar que vem de cima para baixo, chega ao oceano e cria ondas enormes, à medida que começam a interagir umas com as outras.”

O narrador rematava que por causa dos microbursts, os ventos no Triângulo das Bermudas podem chegar aos 230 quilómetros por hora – “mais do que suficiente para arrancar árvores em terra e virar navios no oceano”, acrescentando: “Se o professor Cerveny estiver certo e estas nuvens forem a assinatura de bombas de ar, estas imagens de satélite podem oferecer uma explicação para o desaparecimento de navios como o Cyclops”. E o segmento do documentário dedicado ao “mistério” do Triângulo das Bermudas acabava aí, passando para outros “mistérios”, como uma gruta na Antárctida que seria um esconderijo nazi ou umas luzes de origem estranha no meio da Austrália.

O exemplo do Canal da Mancha e do Mar do Norte serviu assim para os dois meteorologistas e o narrador fundamentarem as suas afirmações – diziam que ali não só havia nuvens hexagonais como microbursts e que estes estariam também na origem das tempestades nas Caraíbas.
A geofísica explica

Acontece que as nuvens hexagonais, ou nuvens de célula aberta, são bem conhecidas dos meteorologistas. Na verdade, cobrem a maior parte dos oceanos, na zona de alto-mar. Desenvolvem-se devido ao fenómeno da convecção atmosférica – movimento causado pelo ar mais quente (que sobe) e pelo ar mais frio (que desce). Por isso, não é de estranhar que nas Caraíbas, onde a água do oceano é quente, se formem nuvens hexagonais. “O mar dos trópicos pode chegar aos 27 graus Celsius”, explica ao PÚBLICO o meteorologista Pedro Viterbo, do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

Acontece também que os microbursts (igualmente um fenómeno de convecção, como as nuvens hexagonais) podem ocorrer em muitos locais da Terra. “É um fenómeno de reduzida escala espacial, que consiste num intenso movimento vertical descendente proveniente de níveis elevados de uma célula convectiva”, explica um glossário no site do IPMA. Ao dirigir-se para o solo esse ar descendente vai acelerando e pode causar estragos equivalentes a um tornado fraco. E o vento horizontal associado a este fenómeno, à superfície, pode exceder 180 quilómetros por hora. Mas, ainda assim, um furacão pode ser bastante pior do que um microburst, atingindo os seus ventos 250 quilómetros por hora.

Acontece ainda que no Canal da Mancha nem as nuvens hexagonais estão muito presentes nem os microbursts são um fenómeno frequente. “Tanto as nuvens deste tipo como os microbursts estão longe de ser normais no Mar do Norte. Situações de queda do ar para a superfície não são comuns no Canal da Mancha”, explica Pedro Viterbo.

Já no Triângulo das Bermudas, há nuvens hexagonais: “Nuvens de célula aberta são mais observadas no Mar das Caraíbas do que no Mar do Norte. Isto tem a ver, mais uma vez, com a temperatura da água”, esclarece o meteorologista português. Mas em vez de provocarem microbursts, que são fenómenos de pequena dimensão, o que estas nuvens originam são ciclones entre 100 a 500 quilómetros de diâmetro.

Portanto, no documentário compararam-se alhos com bugalhos. As nuvens hexagonais existem por toda a Terra no mar alto mas, por sinal, até há menos no Canal da Mancha. E os microbursts nem acontecem ali nem nas Caraíbas, segundo Pedro Viterbo. “As zonas tropicais têm condições meteorológicas muito diferentes das do Canal da Mancha, não há qualquer ligação”, conclui o meteorologista português.
A importância do cepticismo

A ausência de um elemento que ligasse as duas partes da hipótese – o Triângulo das Bermudas com o Mar do Norte – já era óbvia para os membros da Comunidade Céptica Portuguesa (COMCEPT). “Tal como é conhecido, o Triângulo das Bermudas não passa de um mito”, diz-nos Diana Barbosa, presidente da COMCEPT. “Não há informações que levem a que se conclua que nessa zona há mais desaparecimentos de aviões e navios do que noutras.”

Diana Barbosa realça que não há nenhuma informação sobre o Triângulo das Bermudas publicada em revistas científicas, que dessa forma teria tido a avaliação dos pares: “O Discovery Science, como outros canais, tem feito muita desinformação. O que apresentou neste documentário não vem num artigo científico, vem num programa de televisão.”

É o próprio Steve Miller, da Universidade Estadual do Colorado e um dos meteorologistas do documentário, quem acaba por o confirmar ao PÚBLICO. Diz que deu “uma explicação para as nuvens durante uma entrevista com a equipa de produção”. Mas acha que essas nuvens não explicam o que acontece no Triângulo das Bermudas: “As nuvens são, de facto, interessantes e algo atípicas, se não se olhar para imagens de satélite frequentemente. Mas são muito bem explicadas na física e ocorrem um pouco por todo o mundo”, diz-nos.

Também Randy Cerveny, que é da Universidade Estadual do Arizona, afirmou depois ao jornal USA Today que ficou surpreendido com o resultado do documentário. “Fizeram com que parecesse um grande acontecimento. Infelizmente, não é o caso.” E ao PÚBLICO o gabinete de comunicação daquela universidade disse que o meteorologista nunca publicou qualquer trabalho científico sobre o Triângulo das Bermudas: “O Dr. Cerveny não trabalha sobre este tipo de nuvens e não trabalha sobre o Triângulo das Bermudas.”

A origem do mito

A enciclopédia Britannica define a zona do Triângulo das Bermudas como uma secção do Norte do oceano Atlântico que tem sido associada a desaparecimentos no último século de 50 embarcações e 20 aviões de forma “misteriosa”. “A área, cujas fronteiras não estão definidas, tem uma forma vagamente triangular, marcada pela costa Sul dos EUA, as Bermudas e as Grandes Antilhas”, lê-se. Ainda segundo a enciclopédia, os alegados desaparecimentos começaram em meados do século XIX. Navios como o Wasp (em 1814) e o Wildcat (em 1822) ter-se-iam esfumado ali.


Já no século XX as especulações continuaram. Em 1918, o navio Cyclops naufragou entre a ilha de Barbados e Baltimore. Na altura, especulou-se sobre a ausência de um pedido de socorro (via rádio) do navio antes do seu desaparecimento. No entanto, as trovoadas (muito comuns na zona) podem causar falhas nas comunicações – e o mais provável é que o sinal de rádio se tenha perdido.

Outro caso emblemático foi o do desaparecimento de um esquadrão de cinco aviões de treino da Marinha dos Estados Unidos, o Voo 19, a 5 de Dezembro de 1945. Ter-se-á perdido e desviado da rota até ficar sem combustível e ter-se-á despenhado.

Todos estes casos, muitos relatados em notícias da época, encontram-se compilados no livro The Bermuda Triangle, da autoria de Charles Berlitz, em 1974. Para este autor, eram os “poderes” destrutivos da mítica Atlântida – ilha descrita por Platão numa das suas alegorias – que atraíam os navios para o fundo do mar nas Bermudas.

Só que a base científica deste livro é duvidosa, o mais provável é tratar-se de ficção baseada em casos reais. O problema é que, a partir daí, o mundo nunca mais abandonou a crença de que a área entre a Florida, as Bermudas e Porto Rico era especialmente propensa a desaparecimentos misteriosos. E o filme baseado no livro, The Bermuda Triangle, de 1978, ajudou ainda mais a que a ideia se perpetuasse.

No mesmo ano da publicação do livro de Charles Berlitz, houve quem começasse logo a desmontar o mito, mostrando que não passava disso mesmo. Num artigo para a revista Sealift (da Marinha dos EUA), Howard Rosenberg, escritor e realizador de programas de televisão, dava conta do desaparecimento de 50 navios e 20 aviões na área do Triângulo ao longo de 100 anos. Mas o “mistério” era facilmente explicável: como era uma das zonas do planeta mais navegada e sobrevoada e conhecida pelos seus furacões, Howard Rosenberg concluiu que não deveríamos estranhar aqueles números. Os factores ambientais e geofísicos eram, na realidade, os principais responsáveis pelos desaparecimentos.

“A zona do Triângulo das Bermudas é perigosa, por isso nos anos 60 ficou conhecida por ter naufrágios. Há que perceber, no entanto, que esses naufrágios foram uma consequência de anos seguidos de mau tempo”, esclarece Pedro Viterbo, do IPMA.

Em 1975, um ano depois da publicação do livro de Charles Berlitz, também o norte-americano Lawrence Kusche procurou mostrar que nada de misterioso se passa no Triângulo das Bermudas. No livro The Bermuda Triangle Mistery – Solved, Lawrence Kusche, que era instrutor de voo, deu-se ao trabalho de analisar todos os incidentes relatados no Triângulo das Bermudas. No final, percebeu que quase todos tinham uma explicação – ou por falhas humanas, ou tempestades ou até que tinham acontecido muito longe da zona do Triângulo.

Também demonstrou que, mais tarde ou mais cedo, os destroços tinham sido encontrados, deitando assim por terra um dos principais argumentos que sustentava o “mistério” (e que lhe tinha valido eco nas notícias porque, supostamente, os destroços não eram encontrados). Isto levou Lawrence Kusche a concluir que a maior parte do que se escrevia sobre o Triângulo das Bermudas era, na realidade, “inventado”.

Também o documentário O Misterioso Triângulo das Bermudas, que se estreou em Portugal a 19 de Dezembro no canal Discovery, chegou à mesma conclusão. Neste documentário, faz-se o mesmo que Lawrence Kusche já tinha feito: analisaram-se todos os incidentes e tentou-se perceber as causas. “As pessoas gostam de ouvir histórias de fantasmas, por isso é que este mistério persiste. Nunca se deve duvidar da força de uma má ideia”, diz no final deste documentário o meteorologista Neal Dorst, da NOAA, a agência norte-americana para os oceanos e a atmosfera.
“Um prego no caixão do jornalismo”

Mas as “novas explicações” apresentadas no documentário de Outubro do Discovery Science reactivaram o mito. E acabaram reproduzidas em muitos jornais e outros meios de comunicação de todo o mundo, incluindo no PÚBLICO. “Um dos problemas deste tipo de notícias é o copy paste sem tentar descobrir as origens”, considera António Granado, jornalista e professor de jornalismo na Universidade Nova de Lisboa, que analisou este tema numa das aulas do mestrado em Comunicação de Ciência.

“Se um órgão de comunicação social der a notícia, os outros reproduzem-na sem verificar a informação. O papel da verificação é muito importante, mas está a perder-se”, acrescenta. António Granado está a referir-se ao facto de ser o jornalista que tem a obrigação de verificar a informação, perceber se é credível, se os autores citados já publicaram outros trabalhos na área, se a informação é sustentada por factos empíricos.

“Já não há tempo para a verificação. Publicar uma notícia hoje em dia é uma corrida contra o tempo.” O problema, considera, é “transversal” a todas as áreas do jornalismo e, sempre que acontece, “é um prego no caixão do jornalismo”. E o jornalismo de ciência, em particular, sofre com a falta de jornalistas especializados: “Às vezes cometem-se erros que não passariam se houvesse mais jornalistas experientes.”

fonte: Público

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